Levada do Norte
(Ribeira Brava - Câmara de Lobos)
Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira
Um dos mais dominantes problemas nacionais - e talvez o que possua, nas necessidades populares, mais vasto campo de benefício - é, confirmadamente, a eletrificação do país e, consequentemente, a irrigação do solo ainda inculto ou parcamente agricultado.
As barragens já construídas e as que se constroem com assentada celeridade, dão à Nação uma certeza expressiva do que serão as terras portuguesas metropolitanas dentro de poucos anos, no seu desenvolvimento agrícola e na iluminação das suas cidades e lugares populosos.
Se, há duas décadas, o país encetou uma progressiva marcha sobre o caminho incerto do futuro, hoje poderemos concluir que valeu a pena o dispêndio de um colosso de energias e de sacrifícios. Portugal é outro. As páginas da sua História, acaso amarelecidas pelas inconstâncias mais humanas do que materiais, estão substituídas no seu esmaecimento por cores fixas, arcoirizadas, de um progresso que se agigantou por forma visível, palpável e indestrutível, timbrado na mais alta e inteligente dedicação dos seus dirigentes. Portugal rejuvenesceu. Hoje, vencido a coxear de jornadas que eram menos avanço do que destruição, a batalha do progresso ganhou arrancada decisiva e firme, não em imitações de antigas conquistas territoriais mas em expansão civilizadora e de espiritualidade, em prol do bem comum.
Os timoneiros de antanho regressaram, e têm neste século uma reincarnação, ou os feitos do tempo viveram até nós com os mesmos propósitos de salvamento e de alargamento moderno e grandioso.
As agruras dos dias, dos anos tristes que vivemos sofreram a metamorfose de uma alegria incontida e sã, fulgurante e admirativa. Foi como se a pedra bruta e rígida de um sarcófago se abrisse à plena luz da aurora. Portugal sorri de novo. E, dos seus mirantes, debruçados sobre os continentes e os mares, nestas bandas da Europa e para diante delas, voltou à boca do povo uma cantiga de aleluia e de felicidade, de gratidão e de paz.
O dia 1 de Junho de 1952 fica marcado, na história do arquipélago da Madeira, uma das suas datas festivas mais publicamente solenes. Nem é fácil saber-se, mesmo, qual o seu ato inaugural de mais dilatada e comunicativa satisfação, que mais enchesse de júbilo todas as classes sociais, com predomínio na gente humilde dos campos.
Perante as realidades que dia a dia se corporizam pelo país inteiro, a Madeira acaba de ganhar uma similitude suficientemente nítida no aspeto coetâneo do seu progresso e no volume considerável dos seus números. Como tantíssimas obras nacionais que deram a Portugal outra feição - mais rica, mais distribuidora de confortos, mais à ilharga dos grandes centros europeus - esta que em 1 de Junho de 1952 se inaugurou na ilha-primeira dos nossos Descobrimentos transforma-se em marco que afronta toda a incredulidade, lídimo gémeo doutros que se erguem na terra portuguesa a modelar um Portugal melhor.
A construção, nesta ilha, da Levada do Norte (Ribeira Brava - Câmara de Lobos), não era tarefa idêntica à construção de uma estrada, de uma autoartéria, de um Bairro Económico, de núcleos de escolas...
O problema bulia com dois fatores consideráveis: o perigo iminente e continuado no desbravamento de rochas e lugares abismais e uma escrupulosa cautela nas minguadas águas a desviarem-se para a abertura do canal, de modo a não desprover os poucos que a possuíam.
Do primeiro fator poder-se-ia escrever um grande drama. Nem a um só indivíduo - e foram muitos milhares que afluíram ao ato inaugural - é possível aventar, em ideia pálida, o que se enfrentou, os precipícios que se temeram, as vezes em que as vidas se arriscaram, a dureza abrupta das escarpas a desventrar, uma coragem de alpinismo arrepiante, que só o facto de não serem tímidos os cabouqueiros pôde vencer até final.
E foram dias, e meses, e anos, pulando de dorso em dorso, instalando tendas por ambientes áridos, abióticos, expostos às intempéries naturais, e a um sem número de perigos de outra ordem. Falhos de tudo, sem o mais ínfimo pormenor da mais rudimentar comodidade; a enxerga - louvado Deus! - a lembrar a Gruta de Belém; uma sacola por almofada; a chama baça e tremida do petróleo a empastar de sombras a lona da tenda charra; o púcaro de água ao lado, para sede da noite e para "matabicho" do alvorecer; e, corpos estiraçados já a aguardar um sono reconfortante e reparador, o cérebro a desbobinar-se numa revisão quieta e muda de um dia de trabalho insano, escabroso, massacrante, em holocausto ao bem da comunidade, em obediência a um futuro previsto nos cadernos da técnica mas invisível ainda. Só os perigos porque passaram, só a teimosia de um iminente rolar de corpos, de uma trucidação da carne que se pespegava ou rastejava, unhas enclavinhadas, na rocha mísera e macabra; só a vigília permanente da morte que os acompanhava como cabouqueira, também, mas sinistras e fatídicas; só esse arrastar incerto de um porvir que hora a hora ripostava contra uma vontade indómita de arroteamento e de seguir adiante fosse qual fosse a contingência; só o tormento, só as penas vividas e sofridas, só as lágrimas e as rezas pelos que não resistiram à brutalidade dos elementos traiçoeiros; só esse caudal de emoções martirizantes que os agitaram durante anos - seria motivo de acabrunhante, de esmagadora dramatização. Mas o seu estoicismo, a têmpera rija de que fundiram o dever e a devoção, o seu passo resoluto e destemido, e o vislumbre seguro do dia maior - este dia da inauguração - não consentiram nem algemas nem desânimos, nem afrouxamentos nem indecisões.
E tornaram-se, todos, cabouqueiros!
Uma população inteira aguardava serenamente - ainda que com algumas dúvidas ou desconfianças - o resultado do seu exaustivo sacrifício, como, outrora, a multidão dos famintos e sedentários aguardou os mananciais celestes.
Cabouqueiros, na mais valente, na mais hercúlea aceção do termo!
Oito anos decorreram após o início dos trabalhos de campo. O canal abrira-se em toda a sua longitude. E quando as derradeiras colheradas de cimento revestiam os últimos lanços da Levada eles, os cabouqueiros, haviam perdido já os ritos da fadiga, embora um prematuro apergaminhado do rosto tisnado e forte denunciasse a crueza da jornada. E, olhando a paisagem que, afinal, sempre lhes fora aliciante, expandindo um sorriso sinónimo de vitória, cabeça ao alto e olhos sorvendo a brisa suave e branda, visionavam, em frente, a hora benfazeja de uma suspirada recompensa.
Ficara-se para trás quase uma década, aliás inolvidável, tempo em que as suas energias físicas e morais se haviam deixado vergastar ao peso de inclemências, desgostos, sustos...
Hoje, era o princípio do fim, na preparação de hosanas triunfais. Chegara - graças a Deus! - o dia da vitória".
Funchal, Julho de 1952
Eduardo Nunes
Atualizado em 16/08/2019 18:00.